Cléa enaltece 20 anos da Constituição em homenagem a ministros no STF
10/10/2008 10:54h

"A questão é como vencer a dicotomia entre a Constituição Real do país e a Constituição Jurídica, esta que não passa, nas palavras de Lassalle, de um pedaço de papel, ou partilhar do pensamento de Hesse de que a Constituição Jurídica não significa um pedaço de papel". A afirmação foi feita hoje (09) pela secretária geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cléa Carpi da Rocha, ao discursar, em nome da advocacia, na sessão de homenagem realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao centenário de nascimento dos ministros Eloy da Rocha (nascido em 3 de junho de 1907) e Carlos Medeiros (nascido em 19 de junho de 1907).
Ao discursar na homenagem, Cléa enalteceu a passagem dos 20 anos da Constituição e destacou que o que falta aos brasileiros é a vontade política de exercitar, com plenitude, os princípios que ela (a Constituição Federal) consagra. "A fim de que se torne sal da terra, vida digna para todos, ensejando o progresso coletivo, bem como defendê-la das investidas, cada vez maiores, para reduzi-la nas suas grandes conquistas".
Na sessão, Cléa lembrou que ambos os homenageados foram dirigentes da OAB. O ministro Eloy da Rocha, gaúcho, foi conselheiro da Seccional a OAB do Rio Grande do Sul e o ministro Carlos Medeiros Silva, mineiro, foi conselheiro federal da OAB no período de 1961 a 1964.
A seguir a íntegra do discurso feito pela secretária geral do Conselho Federal da OAB, Cléa Carpi da Rocha:
"Senhoras e senhores
Aqui me encontro trazendo a voz e a representatividade da Ordem dos Advogados do Brasil, por delegação do Presidente Cezar Britto, na Sessão Solene em que esta Suprema Corte homenageia dois de seus ilustres integrantes, Ministros Eloy da Rocha e Carlos Medeiros, pelo centenário de nascimento e que de há muito partiram para outra jornada, deixando sua história, sua vida, sua atuação, a lembrança afetuosa e a memória do quanto fizeram por esta Casa, os afetos que aninharam nos seus descendentes e o respeito dos amigos e das pessoas que com eles conviveram.
Coube-me, assim, evocar os dois eminentes juristas, personalidades distintas, mas igualmente densas e respeitáveis, que marcaram sua passagem por esta Corte e pelo universo do Direito em nosso país.
O primeiro, Ministro Eloy da Rocha, gaúcho como eu, está mais próximo do meu relacionamento, com laços que repercutem na formação e na visão doutrinária do direito.
O segundo, Ministro Carlos Medeiros, está mais distante, o que não me impede de reconhecê-lo como um dos nomes expressivos do direito, ao tempo em que pontificou neste STF.
Ambos fazem jus a esta homenagem que hoje recebem desta Casa.
Permitam-me, porém, que comece por Eloy da Rocha. Laços de afeto e de família nos unem. Ao evocá-lo, faço-o com a emoção de quem teve o privilégio de seu convívio, cujos frutos morais e intelectuais ainda hoje me nutrem.
Foi meu professor na Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul. Posteriormente, continuei a desfrutar de sua amizade. Eu e meu marido, aqui, na capital da República, em um dos momentos mais difíceis por que passava a nação - os duros anos de 1968 a 1970 -, recebíamos o carinho do casal, dele e de sua bondosa esposa Juracy de Souza da Rocha, que também já nos deixou. São vivências que não se esquecem e que até hoje me comovem.
Eloy da Rocha possui rica biografia. Advogado atuante por mais de vinte anos, conselheiro seccional da OAB do Rio Grande do Sul, professor, diretor universitário, juiz, desembargador por duas vezes - uma delas na vaga destinada à advocacia -, secretário de Estado, deputado federal constituinte de 1946, ministro desta Corte e, por fim, seu presidente.
Nasceu em São Leopoldo, mas fez seus estudos em Porto Alegre, desde o curso primário até o universitário, formando-se na Faculdade de Direito daquela cidade e freqüentando paralelamente o curso de Filosofia do padre Werner, um intelectual jesuíta, no Ginásio Anchieta. Essa formação filosófica enriqueceria sua visão do direito e sua postura perante a vida.
Bacharelou-se em 1928, e, nos termos da legislação então vigente, pôde ser nomeado juiz municipal da cidade de São Francisco de Paula antes mesmo de se formar. Atuou nessa função sucessivamente nos municípios de Taquara e Bento Gonçalves, pedindo exoneração em 1930.
Queria advogar e, por isso, voltou a Porto Alegre, onde já atuara no Foro, no início de seus estudos universitários, entre 1926 e 1927.
Advogou então por 17 anos seguidos na capital.
É quando suspende suas atividades por força de uma nomeação que o coloca de vez na vida pública. É nomeado secretário de Estado, função que exerce por três anos. Em 1950, volta à sua banca, onde fica até 1953, quando então é nomeado para o Tribunal de Justiça.
Antes disso, entre 1939 e 1943, engaja-se nas lutas de sua classe. Foi membro do Conselho Seccional da OAB do Rio Grande do Sul.
Outra vertente de sua atividade profissional a que se dedicou com afinco foi o magistério. Ainda estudante universitário, em 1924, já lecionava. Só o interrompeu, circunstancialmente, de 1946 a 1951, em face de sua eleição a deputado federal, mandato que exerceu em período extremamente rico, que marcaria de forma indelével sua vida pública: foi constituinte em 1946.
Eis aí o perfil de um homem público generoso, consciente da missão do intelectual junto a seu povo, sobretudo num país com as disparidades sócio-econômicas do nosso.
Entre 1931 e 1932, no antigo curso Superior de Administração e Finanças, que depois se chamaria Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas, da PUC de Porto Alegre, foi sucessivamente titular das cadeiras de Direito Comercial, Direito Civil e Direito Constitucional, Legislação Operária e Direito Industrial, fixando-se nessa disciplina a partir de 1933. Em 1938, transfere-se para a Faculdade de Direito de Porto Alegre, na Universidade do Rio Grande do Sul, onde tive o privilégio de conhecê-lo e de desfrutar da honrosa condição de sua aluna.
Como deputado-constituinte, ofereceu diversas emendas ao projeto de Constituição, sobretudo em relação ao Poder Judiciário e aos princípios referentes ao trabalho.
Promulgada a Constituição, licenciou-se da Câmara em 1947, para assumir a função de Secretário de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, mantendo-se no cargo até 1950.
Indicado pela segunda vez para o Tribunal de Justiça do Estado, na vaga destinada a advogado, foi nomeado desembargador em 1953, função que exerceu até 1966.
Nesse ano, foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Castello Branco.
Transfere-se para Brasília, onde passa a lecionar Direito do Trabalho no Centro Universitário de Brasília - CEUB. Nesta Corte, ficou até 1977, aposentando-se por implemento de idade. Foi seu vice-presidente e presidente, numa época de grandes tensões políticas, que muito exigiram do Judiciário.
Uma vida intensa e exemplar, iluminada por convicções de fé, que não fugiu ao grande desafio que é para o ser humano a busca e o encontro com a verdade. Esse encontro pressupõe liberdade e ação, vigilância e luta. E o Ministro Eloy da Rocha, o caríssimo Professor Eloy da Rocha, cumpriu esse destino, forjando em seus caminhos a sua grande, culta e bondosa personalidade. Sua visão generosa do Direito é a principal lição que dele guardo. Um cidadão. Um magistrado. Um humanista.
Quanto a Carlos Medeiros Silva, não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas acompanhei parcialmente a trajetória pública do Ministro. Mineiro de Juiz de Fora, nasceu em 19 de junho de 1907. Fez seus estudos acadêmicos no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Direito, formando-se em 1929, ingressando imediatamente na advocacia.
Não demorou a começar na vida pública. Foi chefe de gabinete do secretário de Educação da Prefeitura do então Distrito Federal, promotor público, consultor jurídico da Comissão de Defesa Econômica e do Departamento Administrativo do Serviço Público (o antigo Dasp), chefe de gabinete dos ministros da Justiça Francisco Campos e Carlos Luz. Tudo isso nas décadas de 30 e 40, pontificando sobretudo no período do Estado Novo - de 1937 a 1945.
Na década de 50, foi sucessivamente Consultor Geral da República no governo de Getúlio Vargas e Procurador Geral da República no governo de Juscelino Kubitschek. Integrou a Comissão Nacional de Política Agrária e dos atos constitutivos da Petróleo Brasileiro (Petrobrás) ainda no segundo período de Vargas.
Paralelamente aos cargos que ocupou, todos de grande relevância, participou de numerosas comissões técnicas para reformas legislativas, abrangendo temas variados, mas com ênfase na área administrativa, sua especialidade.
Possui diversos trabalhos publicados, que até hoje são fonte de consulta para os estudiosos do Direito.
Foi nomeado Ministro do Supremo em 1965, pelo Presidente Castelo Branco, em vaga criada por força do Ato Institucional nº 2, que aumentou a composição desta Corte para 16 membros. Foi aposentado a pedido em julho de 1966, nomeado que fora pelo Presidente Castello Branco para o cargo de Ministro da Justiça.
Ali vivenciou alguns dos momentos mais questionados do primeiro governo do regime militar, do qual tornou-se figura influente, como principal autor do projeto que resultou na Constituição de 1967.
Foi também conselheiro federal da OAB, no período de 1961 a 1964. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1983.
Temos aí o perfil de um jurista ortodoxo, em que, além das qualidades intelectuais, sobreleva outra, que merece destaque: a coerência entre discurso e prática. E Carlos Medeiros, expoente do pensamento que o inspirou jamais escondeu suas convicções e jamais deixou de agir em consonância com elas.
Considero essa uma virtude, que nem todos ousam praticar. Participou de governos autoritários por crer na eficácia e justeza daqueles caminhos, que a história, a meu ver, mostrou inadequados. Mas não o fez por razões menores, senão movido por convicções doutrinárias, que podemos não professar - e não professamos -, mas com as quais aprendemos a conviver.
Viveu dos frutos de seu trabalho e foi, sem dúvida nenhuma, um laborioso profissional do direito.
Neste momento, faz-se mister também lembrar dois acontecimentos plenos de significado para o mundo e para o país, como um vigoroso feixe de trigo:
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja data comemorativa dos sessenta anos se avizinha, reitera a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos de homens e mulheres.
A Declaração, muito embora sem força coercitiva, impôs obrigações e compromissos éticos, morais e políticos aos Estados-Partes. Sua destinação é universal, visando a todos os povos, a todas as nações e a todos os seres humanos. Posteriormente, com os Pactos dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabeleceram as Nações Unidas os instrumentos, pelos quais os países signatários se obrigam à efetivação dos importantes enunciados da Declaração de 1948.
Os Vinte Anos da Constituição da República Federativa do Brasil, completados no dia cinco deste mês, semana passada, elaborada e instituída sob um regime de plena liberdade democrática é, sem dúvida alguma, a Constituição cidadã na definição de Ulysses Guimarães. Foi fruto de longa e penosa luta da cidadania brasileira, que teve seu ponto de inflexão em Raymundo Faoro, em 1978, com o início do assim chamado processo de distensão política.
A OAB está na gênese do Estado constitucional vigente hoje no Brasil.
Esteve na vanguarda das lutas cívicas que propiciaram a redemocratização - e com ela o fim da censura -, a anistia, o restabelecimento de eleições diretas em todos os níveis, a liberdade de plena organização partidária e, por fim, a Assembléia Nacional Constituinte, que promulgou a Carta Magna de 1988, consolidando todas aquelas conquistas.
Hoje, fala-se na fragilidade da Constituição de 1988, na quantidade expressiva de emendas - 56, ao todo -, mas é preciso que se diga que essas mudanças concentram-se em sua maioria no capítulo da ordem econômica, dadas as transformações que a globalização e o colapso dos regimes socialistas ocasionaram.
O mundo ainda não emergiu desse processo, não visualizou o seu desfecho.
A idéia de que a história teria terminado, com o triunfo liberal, é um logro, que os acontecimentos presentes atestam. O recente socorro do governo dos Estados Unidos ao mercado imobiliário, a fragilidade do sistema bancário norte-americano, com profundas repercussões no mundo, entre muitos outros sinais, atestam que o neoliberalismo, sim, está moribundo.
Mas a lógica neoliberal é que fez circular a idéia de que a Carta de 88 era natimorta. Nascera esclerosada e governar com ela seria impossível.
Houve até movimentos, sem repercussão ou lastro social, para revogá-la, por meio de convocação de nova Assembléia Constituinte - que uns queriam parcial, outros plena; uns congressual, outros exclusiva.
Partiam todos dessa convicção: a Carta de 88 não duraria, não era boa, não era contemporânea dos desafios que o país precisava vencer.
Pois bem: estamos aqui, a celebrar sua segunda década de vigência dentro da ordem jurídica do Estado democrático de Direito.
Valho-me, nesta oportunidade, de invocar para a nossa Constituição cidadã o ensinamento de Esteban Echeverría quando aponta como um raio que parte do céu, que esa ley sirve de piedra de toque a todas a otras leyes; su luz las ilumina, y todos los pensamientos y acciones del cuerpo social y de los poderes constituidos, nacen de ella y vienen a convergir a su centro. Ella es la fuerza motriz que da impulso, y en torno a la cual gravitan, como los astros en torno del sol, todas las fuerzas parciales que componen el mundo de la democracia.
A questão é como vencer a dicotomia entre a Constituição Real do país e a Constituição Jurídica, esta que não passa, nas palavras de Lassalle, de um pedaço de papel, ou partilhar do pensamento de Hesse de que a Constituição Jurídica não significa um pedaço de papel, porquanto existem pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa. O ensinamento de Raul Machado Horta indica que o acatamento à Constituição ultrapassa a imperatividade jurídica de seu comando supremo. Decorre, também, da adesão à Constituição, que se espraia na alma coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional. É o domínio do sentimento constitucional.
O que falta é a vontade política de exercitar, com plenitude, os princípios que ela consagra, a fim de que se torne sal da terra, vida digna para todos, ensejando o progresso coletivo, bem como defendê-la das investidas, cada vez maiores, para reduzi-la nas suas grandes conquistas.
E para nós, advogados, abre-se toda uma nova perspectiva, no nosso ofício particular, no nosso compromisso com a sociedade, na nossa luta pelo respeito aos direitos humanos, na nossa vigilância contínua, não só quanto à aplicação da lei, mas na efetiva distribuição da Justiça. Os problemas que afligem o quotidiano do advogado, no seu mister, estão ligados à visão global de uma sociedade e da necessidade de mudá-la para atender o bem comum. Por isso, o empenho para a concretização da democracia, a garantir não qualquer convívio social, mas um convívio social justo.
Ao finalizar, permitam-me ainda destacar a pessoa do Ministro Eloy da Rocha, meu saudoso professor e amigo, que deu vida à palavra, através de um trabalho brilhante e de uma vida exemplar, permitindo que o Verbo do convívio se encarnasse, quando a semeadura retorna em diversas ramas, numa frondosa árvore de justiça e solidariedade, como expressam os versos de Maria Carpi,
A palavra ainda não é semente,
quando na mão do semeador, latejando.
A palavra ainda não é semente,
quando suspensa no ar, gorjeando.
A palavra ainda não é semente,
Quando estala seu corpo contra o solo.
Nem é semente a palavra
da haste do trigo, em fogo.
E os riachos que o percorrem.
Somente a palavra é semente
quando o grão retorna, passo a passo.
Muito obrigada."
10/10/2008 10:54h